É fascinante observar o diálogo entre a realidade e a ficção neste momento específico de dezembro de 2025. De um lado, temos o Papa Leão XIV da história real, o cardeal Robert Francis Prevost, eleito em maio deste ano como o primeiro pontífice norte-americano (e cidadão peruano). Do outro, temos o recém-lançado thriller de Mailson Ramos, Leão XIV – A eleição do cardeal Ravasi, que apresenta Giuseppe Ravasi, o Patriarca de Veneza que assume o mesmo nome papal. Embora compartilhem o título “Leão XIV”, as trajetórias e os perfis destes dois homens — um de carne e osso, outro de tinta e papel — revelam contrastes profundos sobre o futuro da Igreja Católica.
A primeira grande diferença reside na origem e na geografia de seus pontificados. O Leão XIV da realidade, Robert Prevost, rompeu a barreira europeia ao trazer para o trono de Pedro a experiência missionária das Américas. Sua vivência como agostiniano no Peru e sua origem em Chicago moldaram um papa com perfil de “pastor de duas pátrias”, focado nas periferias geográficas e no trabalho missionário prático. Já o personagem Giuseppe Ravasi representa um retorno à tradição italiana clássica; como Patriarca de Veneza, ele descende da linhagem histórica de papas que ocuparam essa sé antes de Roma (como Pio X e João XXIII), sugerindo uma continuidade institucional europeia que a realidade, com Prevost, acabou por descartar.
As divergências teológicas
No campo ideológico e teológico, as figuras também divergem. O Papa Prevost real tem se mostrado uma figura de equilíbrio e síntese, com forte ênfase na Doutrina Social da Igreja (evocando o legado de Leão XIII e a Rerum Novarum), buscando mediar conflitos globais, como visto em suas recentes viagens à Turquia e ao Líbano. Por outro lado, o Giuseppe Ravasi de Mailson Ramos é descrito como um cardeal abertamente progressista, autor de uma encíclica chamada Renovatio Ecclesia, cuja eleição é fruto de tensões internas e disputas de poder no conclave. Enquanto Prevost busca a unidade pelo serviço pastoral e diplomacia, Ravasi parece ser o veículo para questionamentos mais incisivos sobre as estruturas da Cúria e a adaptação da Igreja ao mundo contemporâneo.
A natureza de suas eleições reflete o espírito de seus respectivos universos. A eleição de Prevost em maio de 2025 foi marcada pela surpresa de um papa agostiniano e americano, vista como um sinal de universalidade e uma resposta “para fora” dos muros do Vaticano. Em contrapartida, a ascensão de Ravasi no livro é construída sobre a intriga palaciana e o xadrez político do conclave, onde o foco está “para dentro”. A ficção de Ramos explora o drama humano e as maquinações do poder eclesiástico, enquanto a realidade de Prevost focou na rapidez de um consenso para liderar um mundo em crise.
O simbolismo do nome “Leão” carrega pesos distintos para ambos. Para o papa real, Prevost, a escolha de Leão XIV parece sinalizar uma retomada da voz ativa da Igreja nas questões sociais e trabalhistas globais, uma diplomacia robusta diante de guerras e desigualdades. Para o personagem Ravasi, o nome pode evocar a força e a coragem necessárias para enfrentar a própria instituição. O “Leão” da ficção precisa rugir contra o conservadorismo interno e a inércia, enquanto o “Leão” da realidade ruge contra a indiferença global e a violência geopolítica.
Leão XIV: as diferenças pastorais
No que tange à ação pastoral, o contraste é visível em suas prioridades imediatas. Desde sua eleição, o Papa Prevost tem se dedicado a ser um peregrino da paz em zonas de conflito, utilizando sua cidadania global para dialogar com o Oriente e o Ocidente. Já o pontificado fictício de Ravasi é marcado pela intelectualidade e pelo desafio de reformar a mentalidade do clero. Enquanto Prevost é o missionário que sai a campo, Ravasi é o intelectual que tenta reordenar a casa, refletindo talvez a visão do autor sobre o que a Igreja deveria ser internamente.
A relação com o antecessor também estabelece tons diferentes. Prevost sucede Francisco mantendo a linha de uma igreja pobre para os pobres, mas com um estilo mais reservado e agostiniano. Ravasi, na obra de Ramos, surge quase como uma resposta dialética, um progressista que talvez precise ir além ou corrigir rotas de forma mais drástica, em relação ao seu antecessor Gregório XVI. A ficção permite rupturas bruscas que a realidade eclesiástica, feita de ritos e continuidades lentas, raramente comporta.
Por fim, a comparação entre o Leão XIV de Prevost e o de Ravasi nos mostra como a arte e a vida tentam responder às mesmas angústias por vias distintas. Mailson Ramos, ao escrever seu livro, capturou o “zeitgeist” ou o desejo por um papa forte (um “Leão”) antes mesmo que a realidade confirmasse o nome. No entanto, a realidade nos deu um Leão missionário e diplomata, enquanto a literatura nos ofereceu um Leão político e reformador. Ambos, à sua maneira, refletem a busca desesperada do mundo moderno por uma liderança moral que seja, ao mesmo tempo, sagrada e profundamente humana.