O padre, a chave e a fechadura

Vicente e Joana protagonizaram o casamento mais efêmero da história de Aurora. Nas ruas da cidade, as pessoas não falavam sobre outro assunto. As tias de língua grande, encostadas nos peitoris das janelas ou fingindo varrer o passeio na manhã ainda sem sol, devoravam a situação como lagarta em folha verde. Nos bares e nas bodegas, os homens travavam prognósticos, quase todos eles difamatórios em relação ao noivo. Porém, ninguém estava mais desolado do que o padre.

— Uma semana de casamento e já se separaram! — gritou o padre Antônio, ao telefone com o bispo. — E pensar que foram batizados aqui, nesta igreja. Católicos de famílias católicas. Dizem que não tem volta!

— Eles precisam é de confissão! — sugeriu o eminente prelado do outro lado da linha. — Casamento não é brincadeira!

Os pais de Vicente correram até a igreja para buscar uma solução com o padre, enquanto os pais de Joana, envergonhadíssimos, não quiseram se expor naqueles dias de recente tribulação. A sociedade de Aurora vivia um tremendo frisson com aquela história, de modo que os mais espertos já haviam organizado um bolão para descobrir a verdadeira razão da separação.

— Aquela menina tem problema! — disse o pai de Vicente ao padre. — Onde já se viu mulher separar-se do marido em plena lua de mel? O senhor não acha, vigário?

O padre abriu os braços, andou dois passos e respondeu:

— Essa história está muito mal contada, mas não há motivos para separação. E Vicente? Onde está?

— Foi para a fazenda! — disse a mãe com cara de desconsolada. — O pobre está que é uma tristeza só. O pai tentou conversar com ele, mas não obteve nenhuma resposta.

O padre chamou o velho para um canto da sacristia e, sussurrando, indagou:

— Será que foi problema de…

— Problema do quê, padre?

— Ora, meu amigo! Problema de chave com fechadura!

O velho saltou do lugar, enfurecido.

— Padre Antônio! Até o senhor? Onde já se viu uma marmota dessas! Meu filho é muito macho! Não ia ter problema de chave com fechadura. Vamos, mulher! Vamos embora daqui! Em vez de ajudar, o vigário está fazendo chacota com o nosso filho.

Diante do estouro do velho, o padre começou a duvidar. A curiosidade foi tanta que ele trocou de batina e partiu para a casa dos pais de Joana. Enquanto seguia pela rua, os olhos dos fofoqueiros de plantão o acompanhavam. Tocou a campainha e entrou. A mãe da mulher o recebeu com cara de poucos amigos.

O padre tomou café com bolachas, comeu um pudim, falou sobre a próxima festa da quermesse e abençoou o gato da empregada que estava doente. Somente aí decidiu falar sobre o assunto que o havia levado até aquela casa. O pai de Joana chegou do trabalho e sentou-se para ouvir o pároco.

— Não podemos aceitar isso com normalidade, a senhora e o senhor me entendem? Pois se assim for, se isso virar moda, ninguém mais vai querer casar.

— Acho que a culpa foi do Vicente, padre! — disse a mãe da jovem. — Problema de chave e fechadura!

O padre afastou-se com um sorriso.

— Pois acabei de dizer isso aos pais do bom moço e eles se exaltaram. Então é mais sério do que eu pensava! Onde está a menina Joana?

— Está no quarto. O senhor quer falar com ela?

— Não, minha senhora. Não é preciso. Não agora. Peça a ela para se confessar na tarde de amanhã. Também vou ouvir o rapaz em confissão. Acho que podemos dar um jeito nisso.

Toda a cidade estava em polvorosa. O padre não contou nem uma só palavra sobre as conversas que teve com os pais dos jovens e pediu ao sacristão para avisar Vicente sobre o seu chamado. Naquela época, nas cidades pequenas, o pedido de um padre era quase uma ordem.

Na tarde do dia seguinte, diante da apreensão do povo inteiro, da agitação nas bodegas e nas portas das madames fuxiqueiras, Antônio recebeu o casalzinho. Cada um sentou-se com os pais, em lados opostos da fileira de bancos. Joana entrou no confessionário.

— Pequei, santíssimo vigário! — disse ela. — Casei-me com um homem que ronca. Ronca feito um barrão! Tão jovem e ronca como motor de carro velho! A culpa é minha. Não deveria ter subido ao altar.

— Você tem certeza que é por isso?

— Mas o que mais seria, padre?

— Tudo bem! Eu te absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas com uma condição: volte para o seu marido e leve-o ao médico. Onde já se viu acabar casamento por causa de ronco?

Joana saiu do confessionário. Vicente entrou.

— Pequei, santíssimo vigário! Minha mulher ronca a noite toda. Tão linda, quase perfeita. Mas ronca feito um trovão.

O padre saiu do confessionário demonstrando irritação. Para evitar perda de tempo, gritou:

— Vicente e Joana! Amanhã os dois vão a um médico do sono. Voltem para a sua casa e mantenham o casamento pelo amor e graça de Nosso Senhor Jesus!

Os pais saíram em festa, percebendo que o problema estava resolvido. O padre permaneceu no centro da nave da igreja, observando o casal sair aos beijinhos no portão. E, olhando para o sacristão, desabafou:

— E eu pensando em chave e fechadura!

0 comentários
1 like
Post anterior: Maldito seja, coronel Ludovico!Próximo post: Vozes & Letras: o podcast de Mailson Ramos

Você vai gostar de ler

Escreva um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sobre mim

Conheça os meus livros e encante-se com uma literatura bem-humorada, apaixonante e cheia de emoção. Leia mais!

Últimos posts
Categorias